Notas técnicas

21/10/2020

Benefício de Prestação Continuada (BPC) para famílias com renda per capita de até meio salário mínimo

A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: “[….] a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”. (CF, art. 203, V).

É óbvio que tal dispositivo carece de mediação legislativa, com especial atenção para o conceito de “incapacidade econômica”. Nesse sentido, o que observa as seguintes mudanças no sistema normativo (infraconstitucional):

Lei 8.742, de 07 de novembro de 1993:

 

Art. 20 (…) § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.

 

Lei 13.981/2020, promulgada em 24 de março de 2020:

 

Art. 20 (…) §3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ½ (meio) salário-mínimo.

Por último, a Lei 13.982, de 2 de abril de 2020, que conferiu nova redação ao art. 20, § 3º, da Lei n 8.742/1993. Nesse novo ato normativo, o Presidente da República vetou a proposta de alteração do inciso II do § 3º do art. 20 dessa lei. Não obstante, a questão da renda mensal ainda é passível de apreciação pelo Congresso Nacional.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Medida Cautelar Na Arguição De Descumprimento De Preceito Fundamental 662 Distrito Federal, determinou a suspensão da eficácia do art. 20, § 3º, da Lei 8.742, na redação dada pela Lei 13.981, de 24 de março de 2020, enquanto não sobrevier a implementação de todas as condições previstas no art. 195, §5°, da CF, art. 113 do ADCT, bem como nos arts. 17 e 24 da LRF e ainda do art. 114 da LDO.

Aqui os argumentos contrários a ampliação da renda mensal per capita para 1/2 (meio) salário-mínimo carecem da clareza e objetividade.

A assistência social visa proteger aqueles que não possuem renda para a própria subsistência ou família que os sustente, sendo o benefício assistencial o modo mais específico de implementação das iniciativas do Poder Público e da sociedade em favor das pessoas (não seguradas da previdência social) portadoras de deficiência e aos idosos (com mais de 65 anos de idade).[1]

O Benefício de Prestação Continuada possui critérios controláveis e confiáveis, que autorizam sua concessão no caso concreto.

Ao contrário do que restou expresso na referida decisão do Min. Gilmar Mendes, existem julgados nos quais se analisou a aplicabilidade do  art. 195, § 5º, da CF ao benefício em foco. Nesse nível, é importante a distinção entre benefícios previdenciários e assistenciais. Nos benefícios (previdenciários) programados é possível se estabelecer linearmente algo esperado, o que acarreta na clara visualização de uma relação entre custeio e benefício. Analisando a questão sob um viés acadêmico, Fábio Zambitte resumiu muito bem a lógica do sistema:

Quanto mais previsível for a prestação e quanto mais for o sistema vinculado ao tradicional sistema de seguro social, mais evidente será a relação jurídica única. Ao revés, quando maior a imprevisibilidade da prestação, e quanto maior a solidariedade do sistema, menor será a relação entre custeio e benefício, individualmente considerada.[2]

Tanto a incapacidade para a vida independente e para o trabalho como a incapacidade econômica estão numa dimensão de “natureza” não programada, afinal, ninguém quer ficar deficiente, depender da assistência de terceiros e, tampouco, em situação de risco social. Por outro lado, todos esperam envelhecer e se aposentar – é algo diferente. Essa diferenciação entre benefícios previdenciários e assistenciais, de natureza programada ou não programada, é de extrema importância para se pensar a possibilidade de ampliação da renda mensal, não apenas do ponto de vista do debate acadêmico. Em muitos casos, o benefício assistencial surge em ordem sucessiva (subsidiária) em relação ao benefício previdenciário, porquanto invocado nos casos de perda da qualidade de segurado ou ausência de tempo de contribuição suficiente, enfim, quando a pessoa não está protegida pela previdência social e, cumulativamente, encontra-se em situação de vulnerabilidade social e/ou de miserabilidade.

Inúmeras são as decisões judiciais pautadas pela análise do acórdão do STF,  publicado em 2017, que decidiu o Tema 173, em sede de repercussão geral, sobre a concessão de benefício assistencial a residentes estrangeiros residentes no Brasil. Segue abaixo a tese atualmente em aplicação:

ASSISTÊNCIA SOCIAL – ESTRANGEIROS RESIDENTES NO PAÍS – ARTIGO 203, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ALCANCE. A assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal beneficia brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros residentes no País, atendidos os requisitos constitucionais e legais. (RE 587970, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-215 DIVULG 21-09-2017 PUBLIC 22-09-2017)

Oportuna a transcrição do seguinte parágrafo:

O orçamento, embora peça essencial nas sociedades contemporâneas, não possui valor absoluto. A natureza multifária do orçamento abre espaço à atividade assistencial, que se mostra de importância superlativa no texto da Constituição de 1988. Não foram apresentadas provas técnicas da indisponibilidade financeira e do suposto impacto para os cofres públicos nem, tampouco, de prejuízo para os brasileiros natos e naturalizados, isso sem considerar, presumindo-se, que não são muitos os estrangeiros enquadráveis na norma constitucional.

É importante pedir-se provas, e não meras alegações.

À luz do princípio da universalidade, poder-se-ia defender a ampliação do critério de renda mensal per capita. Além do mais, o benefício assistencial pode ser associado aos direitos fundamentais à saúde, à vida e à dignidade. No entanto, esse princípio é limitado por outros princípios e, em termos práticos, pela disponibilidade de recursos do país. Os princípios da seletividade e da distributividade, por exemplo, permitem escolhas direcionadas para as pessoas com maior necessidade.

No centro de tudo, a solidariedade, que é pressuposto para “a ação cooperativa da sociedade, sendo condição fundamental para a materialização do bem-estar social […]”[3]A solidariedade entre trabalhadores impõe a todos o custeio preferencialmente de prestações de natureza não programada. As contribuições sociais para a seguridade social “não se fundam unicamente no critério da referibilidade, ou seja, na relação de pertinência entre a obrigação imposta e o benefício a ser usufruído, pois ‘seus objetivos visam permitir a universalidade da cobertura e do atendimento’”[4]. É por isso que o Estado determina o pagamento compulsório de contribuições. Aliás, não existe solidariedade sem compulsoriedade, sem responsabilidade objetiva.

Para Alfredo J. Ruprecht: “É uma instituição profundamente humana. A sociedade impõe eticamente a seus integrantes uma subordinação do interesse individual ao bem comum, isto é, exige forçosamente que haja solidariedade entre eles. A seguridade social adquire seu grande desenvolvimento quando imposta por via legal como obrigatória”.[5] Acredita-se, também, numa verdadeira mistura de comportamento auto-interessado e altruísta.

Se levarmos em conta a finalidade do Amparo Assistencial, a solidariedade, do ponto de vista da seguridade social, possui um escopo de atuação ainda mais amplo.

Nesse contexto, percebe-se uma verdadeira evolução dos critérios de renda mensal, na legislação e jurisprudência, levando-se em conta a necessidade da proteção social. Tomamos como exemplo o critério da idade mínima para concessão do benefício:

I – no período de 1º de janeiro de 1996 a 31 de dezembro de 1997, vigência da redação original do art. 38 da lei 8.742, de 1993, a idade mínima para o idoso era a de 70 (setenta) anos;

 

II – no período de 1º de janeiro de 1998 a 31 de dezembro de 2003, a idade mínima para o idoso passou a ser de 67 (sessenta e sete anos), em razão da Lei 9.720/98;

 

III – a partir de 1º de janeiro de 2004, com o Estatuto do Idoso (art. 34 c/c art. 118, ambos da Lei 10.741/03), a idade passou para 65 (sessenta e cinco) anos. Apesar da lei 10.741/03 fixar a idade de 60 como paradigma para a qualificação da pessoa como idoso, o benefício assistencial restou limitado aos idosos necessitados com mais de 65 anos.

O legislador admite que o sistema não foi capaz de manter o seu fim, devendo ser analisado abrandados os requisitos de acesso ao fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.

Não passa de uma meia verdade a ideia de que a ampliação do critério não consubstancia medida emergencial e temporária voltada ao enfrentamento do contexto de calamidade da COVID-19, sob o argumento de que se trata de uma expansão do benefício ou de que é necessário fazer uma distinção entre as medidas temporárias de combate à crise do Coronavírus e as medidas expansão permanente do gasto público.

A uma, porque o BPC é um benefício que tem como finalidade tirar o pobre da pobreza, e não mantê-lo, mormente a partir da ampliação da renda mensal, isto é, num momento de crise. Por outras palavras, ele não é vitalício. A duas, existem projetos de lei que estabelecem uma manutenção temporária para o BPC, considerando a pessoa com deficiência que vier a exercer atividade remunerada. A três, os benefícios não se excluem, eles suplementam-se mutuamente e podem, além disso, reforçar uns aos outros, aumentando as capacidades das pessoas e conferindo dignidade humana. A quatro, não há como se prever o período de latência da crise.

A mudança legislativa sugerida vai ao encontro da realidade brasileira, da desigualdade social, razão pela qual o próprio Supremo Tribunal Federal confirmou a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) que prevê como critério para a concessão de benefício a idosos ou deficientes a renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, por considerar que esse critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade. Foi declarada também a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso).

Essa orientação jurisprudencial parece reafirmar a lógica assumida da ADI 1.232/DF Nesse sentido, Taís Schilling Ferraz:[6]

Não se afastou, por exemplo, a importância de serem estabelecidos critérios na lei, que garantam um mínimo de objetividade aos requisitos para o gozo do benefício, o que, portanto, não impede que a lei se refira à renda familiar mensal per capita mínima. Porém, decidiu-se que este critério, além de não ser interpretado como absoluto, sob pena de inconstitucionalidade, passou por modificação, a partir da superveniência de novas leis que, tratando de outros benefícios, abriram as portas para o reconhecimento da vulnerabilidade social tendo-se por parâmetro a renda mensal per capita de meio salário mínimo no grupo familiar, e substituição à quarta parte do salário mínimo antes utilizada como critério. (Grifo nosso).

O Decreto 6.135/07, por exemplo, ao instituir o Cadastro único para programas Sociais do Governo Federal, define como família atendida aquela com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo, ou a que possua renda mental de até três salários-mínimos (art. 4º).

Não se pode estabelecer um “grau zero de sentido”, como se a Lei 13.981/2020 tivesse inaugurado um critério novo. É de se ver que o critério de ½ ou ¼ deve ser tratado como um ponto de partida (ou retorno), conforme orientação do STF. Não se verifica uma mudança no conceito jurídico de “incapacidade econômica”, vale dizer:  capaz de diminuir ou mudar o foco da ação do Estado, tampouco desorientar a ação dos indivíduos que compõem a sociedade sujeita ao seu poder.

Acontece que a preocupação do sistema com a segurança e previsibilidade faz com que se busque por critérios objetivos, numa tentativa de se controlar racionalmente a aplicação do Direito, o que não significa deixar de fora, da aplicação das regras, os princípios da igualdade, coerência, proporcionalidade (no sentido de insuficiência de proteção de um direito fundamental), para citar apenas estes, que devem ser analisados no caso concreto, diante da situação fática apresentada. Ao passo que se reconhece a insuficiência de critérios objetivos para se definir o alcance do conceito de “incapacidade econômica”, bem assim a complexidade  social, o novo critério está mais próximo das expectativas comportamentais normativas.  Apesar de sua abertura cognitiva, o Direito tem menor capacidade de lidar com as frustrações de suas expectativas do que, por exemplo, o sistema da ciência[7], cujo código (verdade/falsidade) está direcionado para a aquisição constante de conhecimentos científicos novos.[8]

Essa ampliação formal, portanto, é plenamente adaptável à necessidade de o Poder Executivo Federal envidar esforços para a aprovação de benefícios sociais temporários que amenizem os impactos econômicos negativos da pandemia do Covid-19. O Estado “não pode aceitar a desgraça alheia como resultado de sua falta de cuidado com o futuro – devem ser estabelecidos, obrigatoriamente, mecanismos de segurança social”.[9]

Deve-se reconhecer, antes de tudo, que as pessoas não estão em condições de igualdade de oportunidades, com proposição a novas pandemias e crises. Nessa direção, Amartya Sen, em 2010:

A expansão de oportunidades sociais serviu para facilitar o desenvolvimento econômico com alto nível de emprego, criando também circunstâncias favoráveis para a redução das taxas de mortalidade e para o aumento da expectativa de vida. O contraste é nítido com outros países de crescimento elevado – como o Brasil – que apresentaram um crescimento do PNB per capita quase comparável, mas também têm uma longa história de grave desigualdade social, desemprego e descaso com o serviço público de saúde.

Deve-se, por isso, considerar as oportunidades sociais reais que as pessoas têm, sob pena de reproduzir ou aumentar as desigualdades, o que vale para médio e longo prazo, isto é, para o futuro. O Estado jamais poderá aceitar ou ignorar a pobreza. Armando de Oliveira Assis tem razão: “o perigo, é a ameaça a que fica exposta a coletividade diante da possibilidade de qualquer de seus membros, por esta ou aquela ocorrência, ficar privado dos meios essenciais à vida, transformando-se, destarte, num nódulo de infecção no organismo social, que cumpre extirpar”.[10]

Ao Estado é muito mais valioso combater a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, pois, oferecer condições materiais de vida digna e inclusa significa, ao mesmo tempo, diminuir a violência, a injustiça, a exploração, a fome, as doenças, a ignorância etc. É possível, na outra ponta, se diminuir as prestações assistenciais ou o chamado “assistencialismo”, com a promoção de serviços de saúde, educação escolar, emprego com remuneração adequada, redução dos riscos no meio ambiente do trabalho, políticas de inclusão da pessoa idosa, etc.

O crescimento econômico não é tudo, digo, o país não precisa esperar até a economia melhorar ou a pandemia passar: “O processo conduzido pelo custeio público é uma receita para a rápida realização de uma qualidade de vida melhor, e isso tem grande importância para as políticas, mas permanece um excelente argumento para passar-se daí a realizações mais amplas que incluem o crescimento econômico e a elevação das características clássicas da qualidade de vida.”[11]

Não estamos falando de “luxo”. Quem defende a justiça social o faz em razão, exatamente, do seu compromisso com a igualdade social, a redução da pobreza e a proteção de vulneráveis/minorias, e não apesar disso. É necessário o debate, na busca de aperfeiçoamento.

A diminuição da atividade econômica trará impacto especial à população mais pobre – justamente a parcela que mais se beneficiará com a atualização do BPC, o que foi citado pelo Ministro Bruno Dantas[12] ao justificar a revogação da liminar anteriormente concedida em favor da União.

No que diz respeito à jurisprudência do STF reconhecer a necessidade de estimativa do impacto orçamentário e financeiro, há que se considerar duas coisas:

Primeiro, a Emenda Constitucional 95, de 2016, não apenas instituiu um novo regime fiscal, como estabeleceu a necessidade de um estudo de impacto orçamentário e financeiro sempre que alguma proposição legislativa criar ou alterar despesas obrigatórias ou renúncia de receita exatamente, por força dos artigos 113 e 114 da ADCT.  Há situações, portanto, em que proposições legislativas vão depender desse estudo, exatamente, para análise de sua compatibilidade com o novo regime fiscal, in verbis.

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Art. 114. A tramitação de proposição elencada no caput do art. 59 da Constituição Federal, ressalvada a referida no seu inciso V, quando acarretar aumento de despesa ou renúncia de receita, será suspensa por até vinte dias, a requerimento de um quinto dos membros da Casa, nos termos regimentais, para análise de sua compatibilidade com o Novo Regime Fiscal.

O estudo de impacto orçamentário e financeiro nada mais é – e por isso muito – uma avaliação, efetuada por uma equipe de técnicos, apresentando alternativas que podem ser tomadas para,  se for o caso, compatibilizar a proposição legislativa com o novo regime fiscal. Tais estudos possibilitam a observação e a formação de vínculos obrigacionais com o futuro, fornecendo a motivação necessária para suscitar os efeitos indesejados/negativos – assim como o estudo de impacto ambiental (CF/88, art. 225, IV).

Até mesmo no caso de redução de despesas, a limitação do teto dos gastos, que vigorará por vinte exercícios financeiros, pode impossibilitar a abertura de orçamento suplementar para cobrir eventual aumento da necessidade de proteção social. Nesse sentido, não existe um pacto social possível a autorizar a reforma da previdência social, não apenas por ausência de uma verdadeira igualdade em sua celebração, mas em razão da falta de um estudo de impacto orçamentário e financeiro, um vício insanável.

Na verdade, as condições previstas no art. 195, §5°, da CF, art. 113 do ADCT, bem como nos arts. 17 e 24 da LRF e ainda do art. 114 da LDO não foram observadas em nenhuma das medidas tomadas. Ou assim se precede em todos os casos ou se reconhece a desnecessidade ou impossibilidade para todas as hipóteses. Devemos, contudo, cuidar com essa observação, sob pena de tal crítica transformar-se numa tendência ou justificativa para se autorizar um vício constitucional. Para o bem ou para o mal, o caminho não poderá ser o de abrir as portas do Direito para algo inconstitucional, com a manipulação do princípio da precedência do custeio. A situação hermenêutica precisa ser compreendida.

No RE 415.454-4, concluiu-se que a lei que majora benefício previdenciário deve, necessariamente e de modo expresso, indicar a fonte de custeio total (CF, art. 195, § 5o), em receita não pode haver despesa. Isso deveria valer para a aplicação de novos critérios de cálculo a todos os beneficiários, inclusive a Lei 9.032/1995, que implicou a majoração das pensões. Apesar de o Supremo Tribunal Federal dar um alívio para a seguridade social, impedindo que pensões concedidas antes de 1995 cheguem a 100% do salário benefício do segurado, não foi exigida a fonte de custeio para a mudança instituída pela própria Lei 9.032/1995. Além do princípio tempus regit actum quanto ao momento do fato gerador para a concessão de benefícios nas relações previdenciárias, a falta de implementação das condições previstas no art. 195, §5°, da CF foi, em última análise, justificada nas mudanças normativas.

Sobre a divergência que, nesse julgado, gravita em torno da fonte de custeio para tal ajuste: “Não há nenhuma dúvida de que o legislador se preocupou e observou o artigo 195 da Constituição, encontrando e enumerando as fontes de custeio”, afirmou o ministro Cezar Peluso. Ele fez coro ao ministro Britto: “O silêncio da lei só pode significar tratamento isonômico a todos os beneficiários do sistema previdenciário”.

Ademais, o princípio da precedência do custeio não pode significar apenas majoração. Qualquer medida, para ampliar ou restringir o acesso a qualquer benefício, precisa vir acompanhada do respectivo cálculo, por uma questão de coerência em princípio.

De qualquer maneira, há que se considerar essas profundas mudanças no sistema de seguridade social, notadamente desde a EC 20/1998, passando pela EC 41/2003, até chegar num ponto de quase ruptura, representado pela EC 103/2019,  no sentido de se ter criado, de forma oblíqua, a fonte de custeio necessária para se amparar a mudança no critério de renda mensal per capita, com foco no mínimo existencial, isto é, no fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.

É importante destacar que a EC 103/2019 não apenas deixou de cobrir os velhos riscos sociais, mas os potencializa, dificultando o acesso aos benefícios previdenciários e diminuindo o seu valor, aumentando, também, os riscos (de acidentes e doenças ocupacionais) no meio ambiente do trabalho, já que muitas pessoas terão que trabalhar, no mínimo, até 62 anos, de mulher, e 65 anos, se homem. Após um estudo de sinistralidade, em que analisados 3.526.911 acidentes de trabalho, divididos em dois grupos, abaixo de 55 anos e acima de 55 anos de idade, conclui-se que os acidentes mais graves ou mortais ocorreram com os trabalhadores acima de 55 anos e que a idade era um fator determinante para o desenlace fatal ou grave nas metalúrgicas, extração de minérios e indústria de madeiras.[13]

Paradoxalmente, verifica-se, nisso, um reforço do princípio da solidariedade, já que todos, segurados e servidores públicos, deverão contribuir mais e por mais tempo (e receber por menos tempo). Deve ter ficado claro, a EC 103 não criou o financiamento, direto ou indireto, para ampliação do critério da renda mensal, tampouco serve para afastar a exigência constitucional da correspondente fonte de custeio; mas reforça a solidariedade – a solidariedade com seu interesse voltado para os mais carentes. A assistência deve atender a todos, com financiamento por meio de impostos, arrecadados de toda a sociedade. Percebe-se, claramente, que a solidariedade é mais forte em matéria de benefícios assistenciais.

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:         (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

b) a receita ou o faturamento;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

c) o lucro;         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social;        (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

III – sobre a receita de concursos de prognósticos.

IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.         (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

A diretriz axiológica para a criação de políticas públicas e interpretação/aplicação das normas de proteção social, no interior de um Estado Democrático de Direito, é a justiça social. Falar de justiça não é coisa fácil. No centro do debate está a sua relação com a pobreza. Não parece óbvio, nem mesmo hodiernamente. A pobreza (a indigência) já foi encarada como uma forma de punição divina. Na visão do sistema, ao pobre cabia arcar com as consequências de sua condição, quer seja devido ao pecado ou por preguiça. Ele não fazia jus sequer à caridade.[14]

Com isso não se sustenta que a pobreza é, por si só, uma violação de vários direitos humanos fundamentais. Deve-se analisar os diferentes conceitos de pobreza para se definir qual o parâmetro adotado pela norma constitucional (art. 203), a fim de se considerar, até mesmo, suposto nexo conceitual entre “incapacidade econômica” e direitos humanos.

Segundo Fernanda Doz Costa, nos estudos sobre pobreza, este termo tem sido empregado, em geral, de três formas: pobreza com base na renda; como privação de capacidades e, por fim, pobreza como equivalente à exclusão social:

I.A.1. Pobreza com base na renda

 

Definir pobreza como falta de renda ou de poder aquisitivo tornou-se um uso convencionalmente aceito deste termo.20 De acordo com Jeffrey Sachs, há um consenso geral em subdividir a pobreza com base na renda em três espécies: pobreza extrema (ou absoluta), pobreza moderada e pobreza relativa.
‘Pobreza extrema refere-se à condição em que as famílias não conseguem nem ao menos ter acesso a meios básicos de subsistência. Elas são assoladas pela fome crônica, não conseguem ter acesso a tratamento de saúde, não desfrutam de água potável segura e sistema de saneamento básico, não possuem condições de custear a educação de algumas ou de todas as suas crianças, e por vezes são desprovidas de condições elementares de moradia e itens básicos de vestimenta, como sapatos. Ao contrário da pobreza moderada e da relativa, a pobreza extrema somente é encontrada nos países em desenvolvimento. Pobreza moderada, por sua vez, geralmente diz respeito às condições nas quais as necessidades básicas são supridas, embora com grande dificuldade. Por fim, pobreza relativa, geralmente, é definida como uma renda familiar abaixo da média nacional. Em países com uma média de renda elevada, os relativamente pobres não têm acesso à cultura, entretenimento, lazer e a um tratamento de saúde e educação de qualidade, entre outros pré-requisitos para a mobilidade social.’21
O Banco Mundial utiliza este paradigma para calcular a renda, além de estabelecer a chamada ‘linha de pobreza’ (1 dólar por dia medido em termos de paridade do poder aquisitivo) – abaixo desta linha estão aqueles em condição de pobreza extrema.22 O Banco Mundial estabelece outra parâmetro referente à renda entre 1 e 2 dólares por dia, útil para mensurar a chamada pobreza moderada.23

 

I.A.2. Pobreza como privação de capacidades

 

Nas últimas duas décadas, as teorias sobre pobreza passaram a empregar o conceito de bem-estar, indo além da renda como critério último de pobreza.24 Esta mudança se deu, principalmente, a partir do Relatório de Desenvolvimento Humano (sigla original, HDR) elaborado pelo PNUD, sob a clara influência da ‘perspectiva da capacidade’ proposta por Amartya Sen, que define a pobreza como uma ‘privação de capacidades’. A teoria de Sen relaciona pobreza à ideia de ‘vidas empobrecidas’, afirmando que a condição de pobreza está ligada às privações das liberdades básicas que as pessoas podem desfrutar e, decerto, desfrutam. Estas privações referem-se, inclusive, à liberdade de obter uma nutrição satisfatória, de desfrutar um nível de vida adequado, de não sofrer uma morte prematura e de ler e escrever.25 Esta perspectiva reconhece que privações de liberdades tão fundamentais como essas não podem ser exclusivamente atribuídas à baixa renda; decorrem igualmente de privações sistemáticas no acesso a outros bens, serviços e recursos necessários para a subsistência e desenvolvimento humanos, al&eac

 

Diretoria Científica do IBDP

Nota originalmente publicada em 14/04/2020.

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