NOTA TÉCNICA 04/2021 – A possibilidade da concessão de benefícios por incapacidade mediante a apresentação de atestados particulares.
O IBDP- INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO, entidade de cunho científico-jurídico, no uso de suas atribuições que tem entre os seus objetivos a produção de material informativo sobre seguridade social e temas jurídicos relacionados também de ordem processual, buscando proporcionar conteúdos de acesso universal para a classe de operadores do direito, bem como para a sociedade civil, vem apresentar análise técnica sobre os efeitos do art. 6º da Medida provisória nº 1.006-b, de 2020, projeto de lei de conversão nº 2 de 2021.
A presente NOTA TÉCNICA objetiva apresentar e interpretar o referido dispositivo, para lhe retirar os seus efeitos e alcance, tanto na esfera judicial como na esfera administrativa. O art. 6º da Medida provisória nº 1.006-b, de 2020, projeto de lei de conversão nº 2 de 2021 criou a possibilidade da concessão de benefícios por incapacidade mediante a apresentação de atestados particulares. In verbis:
Art. 6º Fica o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) autorizado, até 31 de dezembro de 2021, a conceder o benefício de auxílio por incapacidade temporária de que trata o art. 59 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, mediante apresentação pelo requerente de atestado médico e de documentos complementares que comprovem a doença informada no atestadocomo causa da incapacidade.
- 1º Os requisitos para a apresentação e a forma de análise do atestado médico e dos documentos complementares referidos no caput deste artigo serão estabelecidos em ato conjunto da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS.
- 2º O procedimento estabelecido no caput deste artigo será adotado em caráter excepcional e a duração do benefício por incapacidade temporária dele resultante não terá duração superior a 90 (noventa) dias.
- 3º O INSS cientificará o requerente, no momento do requerimento, de que o benefício concedido com base neste artigo não está sujeito a pedido de prorrogação e de que eventual necessidade de acréscimo ao período inicialmente concedido, ainda que inferior a 90 (noventa) dias, estará sujeita a novo requerimento.
Tal dispositivo tem reflexos tanto na esfera administrativa quanto na judicial. Tem-se como necessário delinear os principais reflexos partindo-se da premissa de que o documento unilateral do segurado passa a ganhar peso probatório muito importante, não obstante o lapso temporal do benefício previdenciário que possa ser auferido a partir daí ser um tanto quanto diminuto (3 meses) – diante da gravidade de tantos acidentes/doenças incapacitantes, inclusive o próprio COVID-19[1].
Na esfera administrativa, antes da pandemia, as perícias realizadas pela autarquia eram presenciais. Porém, a partir de 2020, esse cenário começou a mudar ao ser instituída a figura da antecipação de auxílio-doença, em que apenas o atestado de médico particular passou a ser prova suficiente para concessão do benefício. De fato, diante do surgimento da Pandemia do Covid-19 foi editada Resolução n° 9.381, de 06 de abril de 2020, a tratar da possibilidade de antecipação do auxílio-doença no valor de 1 salário mínimo para quem aguardava perícia administrativa, afastando-se assim a histórica necessidade da perícia direta na agência do INSS (APS) para concessão de benefício por incapacidade[2].
Mas, para compreender globalmente a problemática, é importante traçar algumas definições. O que é perícia direta? A perícia pressupõe que o objeto seja examinado, portanto, se a pessoa está com problema ortopédico, depressão, LER, PAIR, o perito, em contado presencial com o periciado, dá ao fim, em documento escrito, seu parecer conclusivo – a constar no SABI (Sistema de Administração de Benefício por Incapacidade).
Então, a perícia, como regra, tem que ser presencial, ou seja, a prova pericial médica direta se verificar nos casos em que o autor da demanda é justamente quem alega ter sofrido danos à saúde/e/ou à integridade física e mental. A segunda modalidade de perícia é a indireta, que vinha sendo realizada nos casos em que a vítima dos alegados danos falece no curso da demanda ou já era falecida quando do ajuizamento da ação. Nessa hipótese, o perito examina tão-somente os documentos dos autos, e a partir deles, conclui pela capacidade ou incapacidade. Parte-se de uma série de indícios e com base neles retira-se a conclusão – sem, no entanto, ser estabelecido contato direto com o segurado, em que a tradicional acepção de anamnese é posta em prática, com outorga ao expert do uso de algumas manobras físicas, identificando limitações e quadros de dor intensa no paciente[3].
Pois bem, em 2021, como já referido no início, com a continuidade da pandemia, o Congresso Nacional deu um passo à frente e passou a admitir o uso de atestados particulares, também, para concessão de benefício por incapacidade temporário (auxílio-doença), mas não de aposentadoria por invalidez. Aumentou-se, assim, consideravelmente o espaço para utilização da perícia indireta, o que foi objeto de críticas de todas as ordens, por limitar o poder de diagnóstico preciso por parte do expert. Seja como for, pode-se interpretar o dispositivo, para retirar seus efeitos e de maneira favorável ao segurado.
Em primeiro lugar, o uso de atestados médicos deve ser facultativo, ou seja, se o segurado quiser uma perícia presencial a ele deve ser facultada. Assim, o sistema do INSS deve ser adaptado, para permitir os dois modelos, ou seja, a forma direta, que é presencial, e a forma indireta, que é por meio de atestado particular/exames. A administração não pode impor um dos modelos ao segurado, devendo ser examinadas as peculiaridades do caso concreto e inclusive a posição do assistente técnico do segurado, quando houver.
Em segundo lugar, não basta um atestado, é necessário apresentar exames, para que os médicos do INSS e não os servidores administrativos, realizem o exame da documentação de forma global. Não parece crível que os médicos do INSS fiquem alijados do processo de exame da documentação técnica encaminhada pelo segurado. Por outro lado, os peritos do INSS devem, obrigatoriamente, fazer um parecer fundamentado, para que o segurado saiba as razões da concessão ou indeferimento. No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões (CPC, Art. 473 , § 1º).
Ainda a título propedêutico, necessário enfatizar que a perícia, mesmo na modalidade indireta, deve estar suficientemente apta a examinar não só a extensão da incapacidade, mas também avaliar o nexo causal, já que o benefício por incapacidade pode ter natureza acidentária – no caso da pandemia, evidentemente que o coronavírus pode ser adquirido no ambiente de trabalho, hipótese de doença profissional, ou mesmo via acidente de trajeto, no deslocamento para o trabalho. Em sendo acidentário, o auxílio-doença leva do sistema o código 91, sendo usualmente conhecido como “B91”; diferenciando-se assim do benefício de natureza não-acidentária (rectius: natureza previdenciária), o qual leva do sistema o código 31, sendo usualmente conhecido como “B31”. O empregado conhecedor dos seus direitos sabe, desde esse momento de requerimento administrativo de benefício, quais são as importantes diferenças entre um “B91” e um “B31”, e que motivam o pedido expresso para que haja a concessão do primeiro, a partir do reconhecimento da natureza acidentária do benefício provisório pleiteado. Ocorre que somente B91 confere um ano de estabilidade ao obreiro após retorno deste ao ambiente de trabalho, bem como somente o B91 obriga o empregador a efetuar o depósito do FGTS na conta do empregado pelo período que o mesmo se mantenha vinculado ao órgão previdenciário[4].
Em terceiro lugar, o prazo de duração do benefício por incapacidade temporária dele resultante não terá duração superior a 90 (noventa) dias. Com isso, não haverá direito ao pedido de prorrogação, de modo que o segurado deve fazer novo requerimento. Em tese, se o primeiro atestado dá direito ao benefício por prazo maior de 90 dias poderia ser utilizada a mesma documentação, o que agilizaria o pedido administrativo. E o sistema do INSS precisa ser adptado, para permitir o novo requerimento antes de vencer o prazo do primeiro requerimento.
Em quarto lugar, se a parte tiver direito ao benefício de aposentadoria por invalidez, o INSS pode conceder o benefício de auxílio-doença, mas depois deve ser facultada uma perícia presencial, para conceder o benefício definitivo de forma retroativa, desde a primeira DER – se for o caso, a depender inclusive dos resultados dos documentos técnicos produzidos ao longo do processo administrativo concessor de benefício por incapacidade.
Pois bem. Os efeitos dessa lei serão sentidos na esfera judicial é o que se passa a abordar. O processo administrativo e o judicial são independentes, porém há momentos em que as duas esferas se encontram – o que, aliás, vem se sucedendo com uma constância cada vez maior.[5]
Um dos momentos da ligação das duas esferas é o momento da prova.
Deve-se advertir que a questão que se coloca, na presente quadra histórica, é saber se é possível substituir as perícias presenciais, para resolver as lides previdenciárias que tratem dos benefícios por incapacidade. Lembrando que a perícia vai sustentar o julgamento e, por consequência, a coisa julgada. Uma perícia mal elaborada pode ter efeito deletério para as partes.[6] Ora, a perícia na esfera judicial gera coisa julgada e na esfera administrativa não – sendo a questão ainda mais grave no âmbito dos juizados federais previdenciários onde não há previsão de ação rescisória[7].
Como ocorreu na esfera administrativa, até o ano de 2020, nas demandas envolvendo benefício por incapacidade a prova pericial, por meio de perícia presencial, era praticamente um dogma. Tal paradigma começou a ser rompido com a autorização de atestados para concessão de antecipação de auxílio-doença, bem como com a autorização das chamadas perícias indiretas.
O Poder Judiciário, portanto, com base na simetria, deve utilizar os atestados particulares para conceder a antecipação de auxílio-doença. Aqui nem sequer se utiliza a figura da perícia indireta, pois o próprio juízo avalia o atestado juntado, ao menos em cognição sumária para fins de concessão da tutela provisória de urgência.
O INSS vem sistematicamente se opondo às perícias indiretas. Contudo, agora, como a própria esfera administrativa está usando a perícia indireta, não há como não validar as mesmas no âmbito judicial. Porém, como na esfera administrativa, na judicial, tal é uma faculdade do segurado, por isso o juízo tem que intimar o mesmo para dizer se concorda com essa espécie de perícia, também facultando nesse momento que apresente eventuais documentos técnicos novos e úteis ao evento solene.
Além do que, em havendo urgência, os atestados, juntamente com os exames, são prova suficiente para concessão de tutela provisória de mérito. Não há como alegar que os atestados foram produzidos de forma unilateral, pois a própria esfera administrativa, por meio de sua perícia indireta, fez sua validação.
Registre-se, por fim, que não é crível que se faça qualquer tipo de perícia, sem nenhum cuidado, apenas para dar andamento aos processos, com uma efetividade perniciosa[8] – sem maiores preocupações, portanto, com a segurança jurídica, com a qualidade da prestação de jurisdição, enfim, com o processo justo[9], sem que os envolvidos no processo (perito e o próprio julgador da causa) se atentem às máximas de experiência (as regras de bom senso, ao que hodiernamente acontece) bem como a eventuais déficits cognitivos, econômicos e tecnológicos do segurado que tragam cerceamento de defesa e, conseqüente, impossibilidade de demonstração da incapacidade laborativa do trabalhador.[10]
FERNANDO RUBIN
Diretoria Científica do IBDP.